sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

Mentira

Tinha eu uns 6 anos quando disputei a minha primeira batalha da argumentação. Convém lembrar que estávamos em 1965, e que os temas destas batalhas mudavam com a idade. Começavam com o tema “o meu pai é melhor que o teu” (tema desta minha primeira batalha), passávamos para “a minha é maior que a tua” e depois finalizávamos, pelos 12, 13 anos com “a minha namorada é mais linda”. Nos nossos dias só há um tema: o meu computador é melhor que o teu. Só muito mais tarde surgiam os temas importantes, como “o meu carro anda mais que o teu”. Esta minha primeira batalha teve como adversário o Francisco, e a verdade é que não me lembro muito bem como começou nem como decorreu, mas nunca mais consegui esquecer como acabou. Lembro-me, como se fosse hoje, da frase com que arrasei o pobre do Francisco: “e o meu pai tem uma pistola que até deita casas abaixo”. Deixei-o sem argumentação, não precisei da opinião dos nossos colegas que assistiam a esta batalha. Não ganhei aos pontos, ganhei por KO argumentativo. Foi o que pensei. Como estava enganado. Mal sabia eu, que por via desta frase, iria sofrer a única humilhação pública de toda a minha vida. Passados 2 dias deste suposto massacre argumentativo, meu pai chegou a casa, chamou-me, e disse-me: “com que então eu tenho uma pistola que até deita casa abaixo!?”, e contou-me como tinha sabido. Nunca imaginei que o meu pai conhecesse o pai do Francisco, e quando soube disto vi que afinal seria, não só derrotado, mas humilhado. Já nem ouvi a lição de moral que meu pai me deu sobre a mentira. A grande lição estava para vir no dia seguinte, já estava certo disso. Mal cheguei à escola vi o Francisco, e reparei no ar triunfante que exibia. Ele, mal me viu, chamou o resto da rapaziada e começou: “o meu pai falou com o pai do Nuno e afinal ele não tem uma pistola que deita casas abaixo, foi tudo mentira”. Foi a humilhação completa. Ainda pensei mudar para o argumento “ a minha é maior que a tua” mas não estava seguro que pudesse ganhar, ou para o argumento “ a minha namorada é mais linda”, mas estava “solteiro” naquele momento e não me atrevi a mentir mais. A partir daquele dia o meu relacionamento com a mentira mudou completamente, passei a ter medo da mentira, a ter medo de ser desmascarado. Em simultâneo, aquela mordidela que me deu a mentira parece que, a exemplo do Homem Aranha, me deu o “Super Poder” de detectar mentirosos. Quando oiço um tipo que tem um Renault Clio cuja velocidade máxima é 160 kms/ h a gabar-se “ este, na minha mão, já deu 190 kms/h” dou comigo a pensar “sim, sim..e teu pai tem uma pistola que até deita casas abaixo” . Quando oiço um tipo, que ao fim de 3 cervejas e 2 whiskies fica bêbado, gabar-se no dia seguinte “ ontem foi uma de caixão à cova, foram 2 grades de cerveja e uma garrafa de whisky”, lá dou comigo a pensar “pois, e o teu pai tem uma pistola que até deita casa abaixo”. É esta nossa mania de arredondar para cima. Nunca ouvi o tipo do Renault Clio dizer “ este gajos da Renault dizem que o carro dá 160 Kms/h mas na minha mão nunca consegui que chegasse aos 150”, ou “ ontem ao final de duas cervejas e um whisky fiquei bezano “. Não. A nós não nos basta ter a pistola, é necessário que ela deite casa abaixo.

Sou um amante do paradoxo. Um dos mais belos que conheço tem a ver com o deliberado erro de proporções.... Marco Aurélio num final de tarde, relaxando nos jardins do seu palácio e ouvindo o canto de um pássaro disse “Quisera ser um rouxinol, mas Deus fez-me um simples Imperador”. Eram outros tempos, não havia Renaults, nem pistolas....

13 comentários:

Jorge Soares Aka Shinobi disse...

Excelente texto, Nuno! Adoro estas "estórias" vivenciais, que nos marcam para o resto da vida!
Por acaso, não me lembro da minha primeira batalha argumentativa...mas recordo-me vagamente da primeira batalha física. Estava relacionada com a série "Os jovens heróis de Shaolin", e começámos a discutir quem era quem. A certa altura, comecei à pancadaria com um colega meu (chama-se Márcio se não me engano)e, apesar de ficar um tanto ou quanto mal tratado (quem vai à guerra, dá e leva, já dizia o outro), consegui dar-lhe uma coça de todo o tamanho, eh, eh, eh!
Nesse dia, fui o herói de toda a escola, pois o rapaz em questão era conhecido por ser aterrador. Não teve piada quando a minha mãe apareceu na escola, mas daí isso já é outra história...

Grande abraço!

Nuno disse...

Pois é Jorge, o "nunices" é para isto, para contar "estórias" (consoante me vou lembrando),dizer o que me apetece (como a do Sporting), desabafar (como no Banif e na Floribomba)...etc. Como sei que só tenho meia dúzia de visitantes posso disparatar e ter esta liberdade.
Reencontrei o Francisco muitos anos depois na faculdade em Lisboa. Até hoje acho que ele me olha como o maior mentiroso que conheceu na vida, mas também com uma afirmação "uma pistola que deita casas abaixo" estava à espera de quê?
Também tive as minhas batalhas físicas mas foi devido ao outro argumento " a minha namorada é mais bonita", mas isso já são outras histórias...

Um grande Abraço

Su disse...

gostei de ler....
essa tua historia....fixei "o meu pai tem uma pistola que deita a casa abaixo" ..eheheheh


jocas maradas

Nuno disse...

Isso Su...goza...ainda podes ter um filho assim, verde e mentiroso.


Beijocas

Rui Caetano disse...

Um texto para pensar. Os paradoxos, por vezes, indicam os nossos caminhos mais certos.

Nuno disse...

Pois é Rui, eu sou um amante do paradoxo, e acho este particularmente belo... Aparece sempre.

Abraço

Blueminerva disse...

A relação dos homens com a competitividade é crónica e passa por um sem número de coisas que tu tão bem referiste neste teu post.
Um abraço

Nuno disse...

É verdade blueminerva, com a idade o motivo desta competitividade vai mudando, mas tem que haver sempre estas "batalhas". Hoje contentava-me que a minha equipa marcasse mais golos que a do Rui Costa...amanhã arranjarei outro "argumento"

Flávio disse...

Uma das batalhas argumentativas da infância que nunca mais me saiu da cabeça foi a da siposta existência do Pinky Pu.

Nuno disse...

Flávio, não sei quem são os Pinky Pu, mas naquelas idades e para travarmos batalhas da argumentação, qualquer pistola ou qualquer Pinky pu servia.
Um Abraço

MMV disse...

Acho que todos os madeirenses tem esse poder, por isso nunca deixaram a oposição governar... A oposição nem consegue arrumar a sua casa..

Adorei o texto... Falta dizer: "o meu blogue é melhor que o teu..." - é a mentira da pistola...

Nuno disse...

Caro BaBy_BoY_sWiM,

Tens razão, cada madeirense tem um pai com uma pistola que até deita casas abaixo.
Fico contente que tenhas gostado.
Quanto a "omeu blogg é melhor que o teu", como sou novato nestas andanças tenho a certeza que seria novamente desmascarado na praça pública, e teria que recorrer ao clássico "a minha é maior que a tua" correndo o risco de ser a humilhação total.

Um Abração, e aparece sempre, nem que seja para tomarmos uma pinga.
Nuno

MMV disse...

Eu também vivo "teoricamente" em Lisboa... Isto é estudo em Lisboa, mais precisamente Almada... Mas o problema é neste momento estou a fazer Erasmus na Irlanda! Por isso neste momento vivo na Irlanda... É claro que vou algumas vezes à Madeira... Natal, Pascoa e Férias de Verão... Parece-me tão poucas as vezes...


Fico feliz por gostar tanto da nossa terra!

Um grande abraço