domingo, 29 de junho de 2008

Conceição

Uma das criaturas mais estranhas que conheci na minha vida foi a Conceição. A Conceição era empregada doméstica a tempo inteiro lá em casa (antigamente chamava-se “criada” ) e era natural de Câmara de Lobos. Teria vinte e tal anos e eu uns 12, e adorava minha irmã mais nova que tinha 4 anos. Até aqui tudo normal, só que tinha a particularidade de não mastigar “porque lhe metia nojo”, e por isso engolia a comida inteira. Para nós (eu e meus irmãos) era um divertimento vê-la comer quando a refeição incluía batata cosida. Parecia que estávamos no circo, mas confesso que havia vezes que me faltava o ar só de ver o tamanho da batata que ela metia na boca e engolia. O Pescoço da Conceição assemelhava-se àqueles pescoços de aves marinhas que engolem peixes inteiros. Os meus pais nunca acharam grande piada a esta questão, porque temiam que algum dia a Conceição pudesse engasgar-se, e começaram a obrigá-la a mastigar a comida . Era outro momento de diversão para nós.-Vá, mastiga Conceição. Dizia minha mãe.-Não consigo, tenho nojo. Choramingava a ConceiçãoNestes momentos fazíamos plateia para rirmo-nos com as caretas da Conceição a tentar mastigar a comida para perder “o nojo”. Mas conseguiu ao fim de alguns tempos.Um dia minha mãe fez um Pudim Francês, que leva 24 ovos, deixou-o no frigorífico, e fomos todos passear e almoçar fora. A Conceição ficou em casa a fazer as suas tarefas e obviamente tinha o seu almoço. Quando chegámos para o jantar e minha mãe foi buscar o dito pudim para a sobremesa... ele tinha desaparecido, ou seja a Conceição, que já mastigava, tinha despachado de uma só vez ...24 ovos ao almoço. Minha mãe ficou assustada durante 2 dias à espera que o fígado da Conceição rebentasse, mas não rebentou, afinal era de Câmara de Lobos, como ela fazia questão de nos lembrar.A Conceição, alguns anos mais tarde, saiu de nossa casa para casar. Meus pais foram os padrinhos de casamento, e lá foi ela viver para a sua tão amada Câmara de Lobos com o marido. Nunca deixou de nos visitar, principalmente pelo encanto que tinha por minha irmã mais nova, e numa dessas visitas chegou a nossa casa cheia de nódoas negras e escoriações. Questionada por minha mãe sobre a razão de tal aspecto, lá confessou que o marido tomava “um copito a mais” e de vez em quando lhe “chegava a roupa ao pêlo”. A indignação de minha mãe foi enorme, e disse à Conceição (que fazia o que minha mãe lhe dizia.... até a mastigar) “da próxima vez que teu marido chegue a casa bêbado e te queira bater, dá-lhe com o que tiveres na mão”.Não passou nem uma semana, e lá estava a Conceição em nossa casa...chorosa, pedindo ajuda a minha mãe.-Que se passou Conceição? Perguntou minha mãe.-Fiz o que a senhora disse, meu marido veio para bater-me e eu dei-lhe com o que tinha na mão-Fizeste bem, verás que não voltará a incomodar-te-É esse o meu problema senhora, chorava a Conceição-Explica-te mulher, não querias que ele deixasse de bater-te?-Sim, queria, mas não queria que ele morresse-Que aconteceu Conceição, estás a deixar-me nervosa-Quando ele vinha para bater-me o que eu tinha na mão era a panela de pressão, e dei-lhe com a panela na cabeça... está no hospital em coma há 3 dias. (Convém lembrar que as panelas de pressão daquela altura deviam pesar no mínimo uns 10 kg)Obviamente minha mãe ficou em pânico, porque se o homem morresse se sentiria moralmente responsável por aquele “assassinato”. Mas o homem não morreu, e não só não morreu como deixou de beber e de bater na Conceição tornando-se num marido exemplar. A alimentação esteve sempre muito ligada à vida desta Conceição, começou com o nojo de mastigar e acabou por salvar a pressão do casamento com uma panela... de pressão.